quarta-feira, 4 de maio de 2011

Brasil entra em ranking dos países com piores leis de direitos autorais do mundo e especialista diz que prejuízos para população podem ser grandes

A fraude no sistema de distribuição de direitos autorais no Ecad , denunciada pelo Segundo Caderno do GLOBO em 25 de abril, certamente é escandalosa, mas não exatamente surpreendente. Na mesma semana, foi divulgado o relatório "IP Watchlist 2011", que avaliou as leis de direitos autorais em 26 países do mundo em 11 áreas distintas, tendo em vista a liberdade de acesso e uso pelos consumidores de cultura. Entre os piores colocados, o Brasil ficou com um nada honroso quarto lugar. Perdeu (ou melhor, ganhou) apenas de Tailândia, Chile e Reino Unido. Os quatro mais bem colocados foram, na ordem, Moldávia, Estados Unidos, Índia e Líbano.




No Brasil, a avaliação foi feita pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Numa escala de notas de A a F, o país recebeu as mais baixas possíveis nas categorias "escopo e duração do copyright" (que no Brasil é de 70 anos), "liberdade de acesso e uso por usuários domésticos", "liberdade de acesso e uso para bibliotecas" e "liberdade de acesso e uso para educação". Na entrevista abaixo, o advogado Guilherme Varella, do Idec, que participou deste levantamento, feito para a Consumers International, explica por que o país foi reprovado em matéria de direitos autorais e propriedade intelectual.




O que representa a má colocação do Brasil no ranking da Consumers International? Para onde este resultado aponta?




A colocação do Brasil no ranking é um retrato fiel da disciplina autoral no país, no que tange tanto à regulamentação normativa quanto à dinâmica de funcionamento. A lei 9.610/98 (a atual Lei do Direito Autoral) é anacrônica, descompassada com a realidade brasileira e falha na proteção dos autores e nas possibilidades aos consumidores. O direito autoral não é absoluto, como pregam alguns. Assim como demais direitos garantidos constitucionalmente, ele deve ser observado de maneira equilibrada, deve ser compatibilizado com os demais. A concretização dos direitos fundamentais à educação, à cultura, à comunicação passa necessariamente pelo direito autoral. São direitos interdependentes. A relação não pode ser de sobreposição entre eles, mas de simbiose.



Como funciona atualmente a Lei de Direitos Autorais brasileira?



Hoje, a lei autoral brasileira, que garante em grau ínfimo o acesso às obras, conteúdos, serviços e produtos culturais, tem um caráter quase absoluto, extremamente privatista, que se sobrepõe aos demais direitos e interesses públicos. A própria dinâmica de como são estipulados, cobrados, coletados e repassados os direitos autorais é uma afronta aos princípios básicos da boa-fé e da transparência. Além disso, a Lei 9.610/98 foi elaborada num contexto de inexistência da Internet e dos recursos tecnológicos hoje existentes. O digital transformou os paradigmas de produção e consumo da cultura, e a lei autoral não acompanhou. A lei institucionaliza uma situação de marginalização sociocultural, criminalizando condutas cotidianas dos brasileiros que, cada dia mais, usam a Internet para trocar conteúdos, baixar músicas e filmes, digitalizar textos. Para a lei de direito autoral, a maioria da sociedade está errada. Para a sociedade, quem está errada é a lei.



O relatório da IP Watchlist cita a reforma da LDA brasileira como uma das primeiras a apontar "soluções reais para os consumidores que têm seus direitos de usuários obstruídos por proprietários de direitos autorais". Na época da confecção do relatório foi levada em consideração a nova orientação do Ministério da Cultura, que pretende mudar os rumos da reforma da LDA no Brasil?



Sim. Inclusive a ruptura com o projeto de política cultural desenvolvido pelo Ministério da Cultura durante os anos de 2002 a 2010 contou negativamente para a posição do Brasil. Houve um claro retrocesso. A Watchlist 2011 leva em conta aspectos técnicos da legislação, mas também o cenário político de cada país, com seus apontamentos de avanços ou retrocessos.




O recuo na reforma da LDA, a agenda internacional de recrudescimento autoral que cumpre o MinC e outras questões importantes, como a volta da Lei Azeredo (PL 84/99) - que prevê o corte da conexão da Internet de usuários suspeitos de infração aos direitos autorais - mostram um cenário desolador no Brasil. Isso certamente contou para o mau posicionamento do país no ranking.



Como pesquisador do Idec, o que pensa da afirmação da ministra Ana de Hollanda, para quem "direitos autorais são quase como direitos trabalhistas"?



A afirmação da Ministra faz relações confusas e equivocadas. A exemplo do que ocorreu quando disse que a licença Creative Commons é uma "propaganda" e que precisa de "licitação" para estar no site do MinC, sua afirmação mostra desconhecimento do assunto. Mais do que isso, mostra um completo descompasso com o Plano Nacional de Cultura, que agora é lei, e que prevê a reforma da lei de direito autoral para garantir o acesso pleno à cultura, previsto no art. 215, da Constituição. No limite, o que faz a Ministra, embaralhando-se em conceitos diversos e mostrando fragilidade na condução política do processo, é desrespeitar o Plano Nacional de Cultura.



Os direitos autorais têm a função de proteger as criações intelectuais, criar ferramentas para a remuneração dos autores e garantir o seu reconhecimento. Porém, ao mesmo tempo, ela serve de ponte para a efetivação de outros direitos diretamente relacionados ao acesso a essas obras protegidas, como dito, o direito à educação, à cultura, à informação, os direitos dos consumidores, até mesmo os direitos das pessoas com deficiência, que são 15% da população brasileira e que precisam ser resguardados também pela legislação autoral. Uma questão de dignidade humana. Há o caráter privado dos direitos autorais, mas há, de maneira complementar, o seu caráter público, de servir aos interesses e anseios legítimos da sociedade.



Como aproximar o debate de ideias acerca da Lei de Direito Autoral do dia a dia do usuário de bens culturais, para que ele participe desta discussão com mais subsídios e conhecimento?



É preciso desmitificar os direitos autorais. Retirar a sua aura de direito absoluto, sacro, descolado da realidade do cidadão comum. O direito autoral está mais presente no dia-a-dia das pessoas do que elas imaginam, muito por historicamente o debate acerca desse direito ficar restrito a poucos grupos. Um estudante universitário que precisa do xerox pra estudar, uma professora que exibe um filme na sala de aula do ensino fundamental para incrementar o ensino, o pagamento ao Ecad por uma festa de casamento. A compra do bilhete do cinema ou do show, o vídeo da sua banda preferida acessado no You Tube. Em todos esses e em mais uma infinidade de casos, estamos lidando com direitos autorais. Os cidadãos e cidadãs, consumidores e consumidoras precisam se dar conta disso.



Nas relações de consumo, é notória a presença da legislação autoral, na maioria dos casos, cerceando direitos dos consumidores. O consumidor não pode fazer uma cópia privada de um produto (CD, DVD, livro) que já adquiriu. Não tem direito de copiar um livro raro, que ele pesquisa para sua pesquisa científica, nem que esse livro não seja mais vendido por editora alguma. O consumidor não pode sequer passar sua música do CD para o Ipod, que está infringindo a lei de direito autoral. Condutas corriqueiras, legítimas para o acesso à cultura. E a lei proibindo-as. Uma situação cômica, se não fosse trágica.




Fonte: O GLOBO

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